Teve uma vez que uma indiana que trabalhava comigo veio pro Brasil. Como nos falávamos pouco, fui descobrir que ela estava por aqui na véspera do seu retorno à Índia. Ainda assim, fiz questão de conhecê-la pessoalmente e me dispôr a dar uma mão pra ela na cidade, caso fosse necessário.
No final da nossa reunião, perguntei o que ela estava achando de Porto Alegre.
Indiana: Guerrrrmano, os brasileiros não me entendem. Quase não passei na imigração porque ninguém fala inglês direito por aqui.
Ger: Sério? (leia-se “Ah, vá! Nem tu.”) Como que ninguém compreende o teu inglês?
Indiana: Sim. Depois o pessoal da companhia aérea não conseguia me explicar pra onde eu tinha que ir pra pegar o vôo pra Porto Alegre. Isso sem contar a dificuldade que é pra pegar táxi...
As lamentações seguiram e acabei me oferecendo pra ajudá-la no aeroporto no dia seguinte. Eu tinha a esperança de aprender algo legal sobre o país dela enquanto fazia um ato de caridade. O vôo sairia às 19:00 e ela tinha que estar duas horas antes no aeroporto. Assim, combinamos de sair direto do trabalho pra lá, às 16:30.
A PERIGRINAÇÃO
Eram 15:30 quando ela me chamou no messenger dizendo que o táxi já estava nos esperando. Estranhei, mas fui encontrá-la.
Indiana: Vamos, Guerrrrmano?
Ger: OK, mas por que tão cedo?
Indiana: É que tenho medo de perder o avião.
Ger: (“Ao menos vou mais cedo pra casa”) Não tem problema. Essas duas malas grandes são tuas?!
Indiana: Sim, Guerrrrmano.
Ger: Tudo isso são compras?
Indiana: Não comprei nada. Ninguém fala inglês nessas lojas.
Ger: Então tudo isso veio contigo da Índia pra tu passar cinco dias aqui?!
Indiana: Não entendi... Venha! O táxi já está na rua nos esperando.
Ger: Aquilo não é um táxi. Aquilo é um carro prateado com um cara dentro. Os táxis daqui são de outra cor. De onde tu tirou esse taxista?
Indiana: Claro que ele é taxista. É de lá do meu hotel. Ele que me trouxe aqui todos os dias. O Gerente do hotel, que fala inglês, chama o “táxi” e eu negocio a corrida com o próprio “taxista”.
Ger: Hum... Deixa pra lá. Vamos nessa!
Chegamos ao aeroporto. O “taxista” até que arranhava um inglês, porém, estranhamente, desta vez não quis cobrar a corrida. Apenas tirou as malas do carro e desapareceu.
Indiana: Ih, ele se esqueceu de nos cobrar a corrida!
Ger: Não é bem assim...
Encarnei o sociólogo e expliquei pra ela a Lei de Gerson enquanto fazíamos o check-in. Demoramos muito mais que o normal pra fazer todo o ritual de embarque. Começou com a indiana não encontrando o seu código verificador, seguiu com o sistema da empresa aérea não encontrando o complicadíssimo nome dela no sistema e terminou quando fomos atendidos por seres humanos no balcão. Despachada a bagagem, ingenuamente pensei que era a hora de despachar sua dona.
Indiana: Guerrrrrrrmano, tenho fome; me ajuda a comprar alguma coisa?
Ger: Shit! Digo, claro. O que tu quer?
Indiana: Qualquer coisa... Mas lembre que eu sou vegana.
Então não é “qualquer coisa”, droga! Ser vegana no Rio Grande do Sul já deve ser foda. Agora, encontrar comida pra uma vegana num aeroporto onde quase só há fast-food pra vender é muito mais complicado. Reviramos a praça de alimentação em busca de algo que não fosse contra a religião e filosofia de vida da criatura. Nada de frango, nada de queijo (imagina uma vida sem queijo!!), nada de sorvete. Até que depois de esgotarmos todas as possibilidades fiz a cabeça dela: batata-frita do McDonald's. Não era algo que se pudesse chamar de “refeição”, mas matava a fome sem agredir os princípios dela.
Atendente: E o que ela vai querer beber?
Ger: Pode ser Coca?
Indiana: Não. Eu não bebo refri.
Ger: Água?
Indiana: Água eu não quero.
Ger: Suco?
Indiana: Não sei...
Ger: Ela vai querer suco de laranja.
O KARMA
Pensei em sair correndo, mas achei mais correto esperar ela comer e despachar ela pra Índia. Logicamente, ela levou séculos pra comer aquela batatinha média. E o pior: todas as minhas esperanças de ouvir alguma coisa extremamente profunda e/ou exótica sobre a Índia, o hinduísmo, elefantes e vacas sagradas, Shiva, Tantra, Bollywood, whatever foram desaparecendo. A indiana nunca falava muito e, ainda por cima, era muito vingativa com seus questionamentos filosóficos.
Indiana: Guerrrrrrrrrrrrrrrmano, por que poucos brasileiros sabem falar inglês?
Ger: Hã?
Indiana: Por que vocês brasileiros não falam inglês entre si no trabalho, Guerrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrmano?
Ger: ?!
Indiana: Guerrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrmano, como que vocês preferem futebol e não críquete?
Eu já estava ficando louco com aquele sotaque cheio de “rrrrrrrr” e minhas respostas foram novamente encarnando um sociólogo – só que desta vez meio Gilberto Freire meio Analista de Bagé. Afinal, os meus planos de fim de expediente antecipado estavam ruindo e aquilo tudo não estava nos meus planos.
Indiana: Acabei.
Ger: Gostou do suco?
Indiana: Muito bom, mas na Índia têm uns melhores.
Ger: Sem dúvida... Vamos embarcar?
Indiana: Daqui a pouquinho. Preciso que tu me ajude a comprar um presente pro meu filho com minhas últimas cédulas de Real?
Ger: Quê?!
Indiana: Meu filho tem oito anos e adora o Kaká. Ele joga aqui em Porto Alegre?
Ger: Não.
Indiana: Tem time de futebol aqui pelo menos?
Ger: Tem dois. Um vermelho e um azul.
Indiana: Qual time é o melhor?
Ger: O azul, com certeza.
Indiana: Vou comprar uma camiseta pra ele... Custa tudo isso?!
Ger: Preços de aeroporto, minha cara.
Indiana: Acho que vou comprar uma bola então... Acho que o preço tá errado. Olha só que caro.
Ger: O preço é esse mesmo.
Indiana: Ah, então não vou levar presente pro meu filho.
Ger: Vai embarcar então?
Indiana. Não. Vou nas outras lojas ver alguma coisa pra mim.
Oh, God. A indiana e seu paciente e arrependido tradutor zanzaram um tempão pelo aeroporto em busca de alguma bugiganga que a interessasse. Numa das últimas lojas, ela encontrou:
Indiana: Vou levar isso aqui.
Indiana: Uma escultura, eu acho.
Ger: Não. Isso é um kit de fazer caipirinha (como esse ao lado).
Indiana: O que é “caipirinha”?
Ger: Uma bebida alcoólica.
Indiana: Minha religião não me permite beber álcool.
Ger: E...
Indiana: Vou levar do mesmo jeito. Achei o kit bonito.
Ger: Acho que é melhor tu entrar na fila. Agora começa a trancar tudo e quem não está no portão de embarque perde o vôo.
Indiana: Será? É tão cedo...
Ger (já colocando ela na fila): Seríssimo! É melhor tu embarcar cedo do que correr o risco de perder teu vôo pra casa, né?
Indiana: Hmm... Verdade. Mas antes de embarcar eu queria te dar esse presente por tu ter me ajudado hoje, Guerrrrrmano.
Na hora me veio aquele sentimento de culpa, por eu ter sido meio grosseiro e tudo mais. Era uma caixinha vermelha de papelão, bem simples, de onde tirei um chaveiro de tartaruga feito de madeira. Eu me senti o pior ser do planeta. Finalmente algo exótico havia partido daquela indiana.
Ger: Que legal! Obrigado.
Indiana: De nada.
Ger: O que significa esta tartaruga?
Indiana: Nada.
Foi o “nada” com o maior desdém que alguém pode dar. Como assim “nada”? Foi uma tartaruga de madeira dada por uma indiana. Será que ela não notou o que aquilo poderia simbolizar? O que eu mais queria naquele momento era ouvir uma mentira. Queria escutar que aquilo significava a busca pelo nirvana, a paz mundial, o eu-lírico de uma tartaruga mística ou o fim da greve de fome de Gandhi. Tudo menos “nada”! Frustração pura.
Depois disso, só me restou despachar a indiana – ainda com alguma educação – e tomar meu busão pra casa. Eu estava azedo, porém na medida em que voltei a respirar normalmente, um sentimento de dever cumprido foi brotando, pois, querendo ou não, eu havia feito a minha boa-ação do dia, talvez do mês. A raiva estava quase passando. Só que daí eu tirei o meu presente do bolso, olhei praquela caixinha vermelha de papelão uma última vez e li as letrinhas miúdas: Made in China.