quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

MOCHILÃO PELA EUROPA (PARTE 10: BERLIM)

"Viajar é fatal para preconceitos, intolerância e mente fechada, e muitas das nossas pessoas precisam melhorar muito nesses quesitos. Não é possível desenvolver uma visão aberta, saudável e caridosa sobre homens e coisas passando a vida inteira num cantinho da Terra." (Mark Twain)
  
   Viajar de trem noturno é o máximo. O leve balançar dos vagões ao deslizarem pelos trilhos embala o passageiro e o leva até os braços dos deuses do sono em instantes. Mérito também do meu cansaço extremo, só me acordei quando o fiscal avisou que estávamos chegando pontualmente às 6:05 na estação principal de Berlim, cerca de nove horas depois de sairmos de Malmö, na Suécia. Eu havia combinado com o Thomas e a Katja (meus hosts na cidade) que chegaria na casa deles às 9:00. Agora eu tinha uma difícil missão: gastar meu tempo em Berlim até eu poder das as caras no lar do casal, deixar minhas coisas e desbravar a cidade.


ENFIM MOCHILEIRO

   Felizmente, a estação central é fantástica! Na verdade, ela mais parece um shopping – só que com trens, obviamente. Existem muitas lojas e restaurantes lá e até os banheiros são limpos (e foi por lá que comecei a minha “estada” na estação. Feita a higiene pessoal, fui garantir minhas passagens pros próximos lugares e também meus passes de metrô. O problema é que, graças ao horário e a eficiência alemã, tudo isso (descer do trem + banheiro + compra de passagens) levou uns dez, quinze minutos. Eu ainda tinha umas duas horas pra enrolar na estação/shopping.
   Resolvi que era hora de tirar a barriga da miséria. Atirei-me num banco, abri minha mochila e saquei dois cookies gigantes que tinham sobrado da minha janta da noite anterior com a Martina e minha inseparável garrafa da água. Estava feito o meu banquete! Acabado o café-da-manhã, eu ainda tinha muito tempo pra esperar. “O que fazer?”, pensei. “Hum...” – continuei nos meus pensamentos – “bem que eu podia cortar minhas unhas”. Foi o que fiz. Cantarolando baixinho Cascavelletes, aparei minhas unhas das mãos e dos pés, sem o mínimo pudor de fazer isso na frente das centenas de pessoas que já movimentavam a estação e me olhavam com certa ironia. Naquele momento, ao observar que eu estava feliz da vida em ter comido dois míseros cookies (mas que me deixavam louco de faceiro das lembranças que com eles vinham, além do fato de serem de chocolate), estar atirado num banco qualquer num lugar desconhecido e estar totalmente à vontade, podando as unhas e cantarolando em meio à pessoas também desconhecidas, sem nada além da minha mochila e minha dignidade, constatei não ser mais o Germano do início daquela viagem, mas que, enfim, havia me tornado um mochileiro.
   Mas o tempo não passou tão ligeiro assim. Acabei enchendo meu saco de ficar esperando e resolvi dar as caras na casa dos meus hosts meia hora antes. O casal mora num apartamento impecavelmente limpo e organizado, num bairro residencial há uns 8 minutos de metrô do centro da cidade. Fui recebido pelo Thomas e ele foi muito gentil em me dar umas dicas sobre como traçar o melhor roteiro pra conhecer o máximo da cidade no pouco tempo que tinha.


ESTÁÁÁ VALENDO!

   Meu passeio começou à beira do rio Spree até chegar ao Palácio do Governo, o Reichstag. De lá de cima é possível ter uma visão panorâmica e privilegiada da cidade, pois há um esfera transparente e gigante. Infelizmente, depois de eu passar uns 20 minutos na fila (por conta das medidas de segurança que lerdeiam tudo) e já ter adentrado o prédio, descobri que justamente naquela semana que eu estava lá, a tal esfera estava em manutenção. Em todo caso, fotografei a esfera (e uma guria estranha que fez pose na hora da foto).

Alemoa se engraça com o fotógrafo 


Der Reichstag

   Existem muitas outras belas atrações pertinho do Reichstag. Caminhado uns cinco minutos pelo parque Tiergarten (o maior da cidade), cheguei ao Portão de Brandenburgo – que é a porta de entrada pra principal avenida da cidade, a Unter den Linden. Logo do lado do portão há também o Juden Europas – Memorial aos Judeus Europeus Mortos na Segunda Guerra Mundial.
Portão de Brandenburgo

Juden Europas

Tiergarten
 
   Andando mais um pouco, acaba tudo essa coisa de política e história e, do nada, se está em uma das partes mais modernas de Berlim, Potsdamer Platz. Ali prédios ultramodernos e enormes, associados à largas avenidas, museus de tecnologia e música, centro de convenções e bibliotecas se empilham em poucas quadras. Tentei entrar na biblioteca, mas me barraram por eu não ter carteirinha. Em relação aos museus, abri mão deles, pois eu estava em Berlim pra aprender um pouco do passado e do presente.


MEIA TARDE NO MUSEU  

   Eram 13:00 e meu estômago só não doía mais que meus pés cheios de bolhas e feridas. Almocei algo rápido, bebi muita água e segui meu caminho pela Unter den Linden sob um sol de 30°C. Ao chegar no Museu de História da Alemanha, decidi que era ali o museu que eu ia entrar. O lugar conta a história todinha do país, desde 100 A.C. até os dias de hoje. Curti muito as coisas medievais, mas não especificamente as armaduras. Achei o máximo a máscara que os médicos daquele tempo usavam pra não se contaminar com doenças estranhas de seus pacientes. Também curti a mesa de pinball que os reis usavam pra se divertir entre queimar uma bruxa e outra.

Máscara médica e pinball do tempo do epa!

   Na parte mais moderna, logicamente, as duas Guerras Mundiais são o foco principal, dando uma ênfase maior na influência da mídia para o domínio da mentalidade da população. Ali também algumas imagens mais fortes das barbáries da guerra eram expostas. Por fim, antes de sair do museu visitei uma exposição de esculturas que artistas fizeram com pedaços do Muro de Berlim. Só depois dessa visita, umas oito horas depois de chegar à cidade, é que comecei a entender o significado que uma guerra tem...

Homem que sobreviveu a um tiro de fuzil na Primeira Guerra Mundial
 
Artista alemão tenta "executar" numa cadeira elétrica e com uma lança no coração
 
   Continuei a andar pela Unter até chegar à algumas igrejas. Primeiro fui na Deutscher Dom, que é relativamente pequena, se comparada à grandiosa Berliner Dom. O interior dela é lindo (mas as fotos ficaram ruins), e a vista da cidade que se tem do topo dela é diretamente proporcional. A catedral ainda tem um andar subterrâneo, onde se encontram os pomposos túmulos de antigos imperadores alemães.

Berliner Dom

Vista do topo da Berliner Dom

    Arrastei-me pra casa no fim da tarde, mas logo saí de novo. Fui jantar com meus anfitriões num restaurante colombiano ali na vizinhança. Acabei dando uma de intérprete, pois as garçonetes só falavam espanhol, e comi umas belas tapas. A Katja e o Thomas resolveram então me contar das aventuras de bicicleta que eles tiveram por Cuba – diga-se de passagem, o Thomas é dono de uma loja de bicicletas. Disseram que não simpatizaram tanto com o país, porque embora ela seja lindo naturalmente, a população está sempre mais ocupada em explorar o turista do que ser atencioso com ele. Contam eles que existem dois preços no país: um para os cubanos e outro, fortemente inflacionado, para os turistas.
   Depois da janta, eles me levaram pra um breve passeio a pé, para me mostrar que o Muro de Berlim passava praticamente no quintal do prédio deles. No lugar onde hoje é um belo parque com quadras de vôlei de praia, antes passava o muro que, do dia pra noite, separou famílias. Um pouco mais adiante, havia uma exposição comparando a rua, que era dividia entre a Alemanha Russa e a Alemanha Francesa, antes do muro cair com a de agora. Daquele tempo, só restou um pedaço do muro. Tudo o resto foi demolido pelos alemães, que fizeram questão de apagar esse pedaço negro de sua história. Fiz questão de ir lá no dia seguinte, com o dia claro, pra ver tudo melhor e fotografar.

Entre pular um muro e outro da Bernauer Strasse, tu era sumariamente fuzilado

   A Katja e o Thomas nasceram em lados diferentes do muro e contam que ainda existe muita rivalidade entre as pessoas da geração deles. Quem nasceu do lado leste não simpatiza muito com os do oeste e vice-versa. Conta a Katja, nascida do lado oeste, que quando o muro foi derrubado suas aulas foram suspensas. Foi a professora que deu a notícia e ela correu toda faceira até em casa. Lá, encontrou toda a família vestida com a melhor roupa, só a esperando, para que todos fossem do outro lado do muro, visitar seus parentes que há muito tempo não viam.
   Como eu acabei notando, eu não ia ter tempo de visitar um campo de concentração. Por isso, resolvi ver algo mais próximo possível das barbáries da Segunda Guerra: fui no Topografia do Terror – um museu a céu aberto com imagens fortes sobre o que foi tudo aquilo. Se já não me senti muito a vontade naquele ambiente, imagino o que deve ser Auschwitz...
Barbáries da Segunda Guerra Mundial


 OUTRAS SENSAÇÕES
 
   Com o estômago recuperado, almocei uma deliciosa Curry Wurst – lingüiça com molho curry e catchup e batata-frita. Depois dei uma breve banda em Kreuzberg, onde era outra dessas divisas entre Alemanhas, mas desta vez entre França e EUA. Essa divisa é mais turística e menos interessante. Daí fui embora logo, pra conhecer a East Side Gallery.
   A East Side Gallery nada mais é que o maior pedaço do muro de Berlim ainda inteiro, com mais de um quilômetro de comprimento. Muitos artistas que o pintaram entre 89 e 90 estão agora, com a celebração dos 20 anos da queda do muro, restaurando suas pinturas. Tudo muito bonito. Ironicamente, o bairro onde o muro se faz presente em maior intensidade, o Friedrichshain, é o lugar mais alternativo e criativo da cidade. Gente de tudo que é tipo passa por ti, obras de arte estão em tudo que é canto e os bares de amontoam. Até maconha me ofereceram pro lá. Depois ainda consegui a proeza de me perder por um bairro de imigrantes turcos e passar por uns becos sinistros até, enfim, redescobrir meu caminho.

Friedrichshain


Pinturas no Muro de Berlim
 
   Naquela tardinha, o Thomaz e a Katja me propuseram um passeio de bicicleta. Apesar de eu não lembrar quando havia sido a última vez que eu tinha andado de bicicleta, topei a aventura. No fim das contas, eu ainda sabia pedalar e me equilibrar. Cruzamos um bom pedaço de Berlim sobre duas rodas. É impressionante como todos os motoristas respeitam os ciclistas e pedestres, mesmo nas avenidas mais movimentadas na hora do rush. Muitas pedalas depois, a Katja ficou numa ONG onde ela faz trabalho voluntário e o Thomas e eu fomos dar umas bandas num parque grandão que tinha ali perto. Tudo muito lindo, preservado e cheio de gente. Destaco um monumento em homenagem aos soldados russos mortos nas duas últimas semanas de guerra. Além da estátua ao fundo, existem cinco “canteiros” que na verdade são covas coletivas com mil soldados mortos dentro de cada uma.

 
Ger todo pimpão ao cruzar Berlim sobre duas rodas

 5000 russos, um jardim e uma estátua 

   Buscamos a Katja e fomos jantar em Kreuzberg, num lugar popular entre os habitantes da cidade. Por cerca de 10 reais, o cliente compra uma água 500ml e meio frango assado com batata-frita. Para surpresa geral, inclusive minha, comi tudo sozinho – enquanto o casal dividiu um prato desses. Faminto, de sobremesa, devorei ainda um sorvete gigante.

E o colesterol, Germano?

   Novamente de arrasto, começamos a voltar pra casa. Ainda paramos algumas vezes pra ver alguns monumentos e a rua onde ficam as putas alemãs – que, aliás, são muito mais bonitas do que as que ficam nas ruas de Porto Alegre. Cinco horas e 30 quilômetros depois, chegamos em casa. Estava podre, mas eternamente grato pelo passeio. Vou sentir saudades da Katja e do Thomas.

 
No dia seguinte, antes de eu ir embora, o Thomas ainda acordou mais cedo pra preparar um café da manhã reforçado pra minha partida :) 


É BOM TU SABER

   Liberdade é algo que não tem preço. Ser livre para escolher onde ir é hoje algo tão banal quanto espetacular, se nos colocarmos no lugar de outras pessoas, como os alemães de outrora. Em 39 dias na Europa, visitei 12 países sem maiores problemas em cruzar fronteiras. Até chegar a Berlim, não achava nada demais nisso. Os pobres alemães do tempo do Muro, de um dia pra outro, não puderam mais sequer atravessar a rua pra ver seus amigos que agora moravam do outro lado, o lado “inimigo”, ir à escola, mercado ou seja lá o que fosse. Eles não haviam cometido nenhum crime, mas mesmo assim tiveram um dos seus direitos mais puros tirados a força: o de ir e vir, o de ver quem se gosta. Infelizmente, hoje em dia, ainda existem outros muros similares que também limitam tal direito de outras pessoas em outras fronteiras, como os da Palestina com Israel e do México com os EUA. Quem sabe um dia teremos governos que acharão soluções menos infantis e mais humanas de se proteger e manter a ordem em suas divisas.

Um comentário:

  1. Geermano, estou esperando o resto! aheuaheua
    Sério mesmo, você escreve muito bem, tem de continuar a descrição do mochilão!
    Aguardo a continuação! :)

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