Vôo pra Buenos Aires às 23:50. Meu plano era dormir. Apenas era, pois ao meu lado havia um inquieto casal na faixa dos sessenta anos.
Foi num lugar assim que tudo se passou
Cara: Puta que pariu, Fulana. Tu devia ter me deixado beber. Se eu não fico bêbado, não durmo. O que eu vou fazer agora até Buenos Aires?!
Esposa: Lê essa revista do avião, seu resmungão.
Cara: Ler o caralho! Eu queria é estar bêbado agora.
Hora de decolar. Aperto meu cinto de segurança e o mala reinicia.
Cara: Pra quê colocar isso, guri?
Ger: Porque é obrigatório.
Cara: Eu não vou colocar.
Instantes depois:
Aeromoça: O senhor poderia colocar o cinto?
Cara: E precisa?
Aeromoça: Sim. É obrigatório.
Cara: Se o avião cair, tu acha que isso vai me salvar?
(Boa colocação!)
Esposa: Não dá bola pra ele. Ele é um velho enjoado.
(Excelente colocação!!)
Aeromoça: Senhor, é obrigatório.
Cara: Tá bom.
A aeromoça dá as costas.
Cara: Pronto. Já posso tirar o cinto. Ela foi embora.
Esposa: Humpf.
Ainda achando graça naquilo, tentei por meu plano em ação. O grande problema é que o cara resolveu me colocar de vez na vida do casal, como um árbitro das discussões deles, pedindo a minha opinião sobre quem tinha razão.
Cara: Diz pra essa velha que beber faz bem.
Ger: (Sorriso amarelo)
Esposa: Ele acha que tem que ficar bêbado cada vez que vai andar de avião.
Cara: E eu não to certo?
Ger: Sei lá. O negócio é dormir e a viagem logo acaba.
Esposa: Escuta ele.
Cara: Ele tá certo, mas eu tenho que estar bêbado pra dormir bem.
Resolvi me fazer de louco, ignorá-los e tentar dormir mais uma vez. Não deu nem dez minutos e o cara cutucou meu braço:
Cara: Diz pra ela que argentino é tudo viado.
Ger: Hã?
Cara: Diz pra ela que argentino é tudo viado. Os homens se cumprimentam com um beijo na bochecha...
Ger: ...
Cara: Vai dizer que tu achou normal quando viu o Maradona e o Caniggia se beijando.
Ger: Mas deixa eles. O problema é deles.
Cara: Viados são um desvio da sociedade. E eu sei identificar um de longe! Já vi muito disso.
Esposa: ...
Cara: É que eu odeio argentino!
Ger: Aham.
A imagem que traumatizou o meu "amigo"
NÃO PODE SER!!
Ao cortar o assunto mais uma vez, acreditei que agora o casal me deixaria em paz. Assim, reclinei minha poltrona e tentei dormir mais uma vez. Acho que até cochilei, mas o cara mala logo me acordou:
Cara: Esse botão de deitar o banco não funciona. Nem o meu, nem o da minha esposa.
Ger: É que tu tá apertando o botão da minha poltrona.
Talvez por conta do olhar tenebroso que lancei sobre o casal, eles, enfim, me deram um pouco de sossego. Dormi um pouco e lá pelas tantas comecei a ter um sonho meio estranho. Estava tudo escuro e eu sentia que alguém tentava passar por cima de mim.
Cara: Fulana, ele não acorda.
Esposa: Então passa por cima. Ele não vai nem acordar.
Cara: Mas é apertado aqui.
Ger: Eu não to dormindo.
Cara: Deixa eu ir no banheiro então.
Levantei-me e o deixei passar. Nem tentei dormir em seguida, pois eu sabia que tão logo eu pegasse no sono, ele estaria de volta. Claro que, justamente por eu estar acordado, ele demorou. Na volta, depois do mala se acomodar e eu também me sentar novamente, veio o anúncio.
Esposa: Dá licença que eu quero ir no banheiro também.
Cara: Porra, Fulana! Tu esperou eu me sentar pra avisar que tu queria ir ao banheiro?!
Ger: (Olhar fulminante)
Esposa: É que só agora me deu vontade.
Toda aquela novela se repetiu. Levanta o Ger, levanta o mala, passa a esposa. Volta o mala, volta o Ger. Chega a esposa, levanta o Ger, levanta o mala, passa a esposa. Senta a esposa, senta o mala, senta o Ger.
Aquilo tudo que eu estava passando não podia ser normal. Juro que procurei alguma câmera escondida. Eu queria acreditar que aquilo era uma Pegadinha do Malandro ou que aquele cara era o Ivo Holanda. Mas não era.
SUPERAÇÃO
Eis que em meio a toda aquela escuridão, há cerca de dez quilômetros do chão, meu agora inimigo número um resolve observar a paisagem na janela.
Cara: Hum... Bonito.
Ger: ...
Cara: Olha, Fulana. Ali é Bagé.
Esposa: Ahhh.
Ger: ?!
Cara: É sim. Com certeza. Olha a praça!
Que mané praça?! A única coisa passível de ser vista naquela circunstância era a asa do avião e o reflexo daquele mala no vidro da janela.
Mais alguns minutos e a janta chega. Bandejas colocadas, comida quentinha e eu feliz que o mala ia se ocupar comendo. Aqueles seriam os momentos mais tranqüilos da viagem.
Cara: Ooops!
Ger: Bá, cara! Como que tu conseguiu jogar arroz em mim?!
Cara: É que a tampa do pote de comida voou quando eu abri o pote...
Esposa: Ele é sempre assim.
Cara: Se eu tivesse bêbado, eu tava dormindo, velha.
Segui jantando. Mas não tive muita paz.
Cara: Dá licença. Preciso ir no banheiro.
Ger: Agora?
Cara: Agora.
O cheiro de peido já tomava conta do avião. Desta forma, me vi obrigado a encarnar um equilibrista, com a minha bandeja e também a do cara. Tudo pra evitar que o mala se cagasse. Quando ele voltou, antes de me levantar, já perguntei.
Ger: Por acaso a senhora não quer ir no banheiro também?
Esposa: Não, hihihi.
Ger: Então pode vir, senhor.
A REVANCHE
O resto da viagem foi no mesmo ritmo. Aquelas duas horas pareceram dez, doze. Algo interminável. Quando estávamos prestes a pousar, a companhia aérea entregou as fichas de imigração a todos. Comecei a preencher a minha.
Cara: Pra quê serve isso?
Ger: Pra saberem quem tu é, quando chegou e quando foi embora.
Cara: Quem quer saber?
Ger: A Argentina, ora.
Cara: E se eu não preencher?
Ger: Boa sorte!
Cara: Fulana, não vou preencher o meu.
Esposa: Nem eu. Nem precisa, na verdade.
Cara: É isso aí.
Deixei – já começando a sentir um gostinho de vingança crescendo dentro de mim. Um pouco depois o avião começou a descer e o mala foi pra janela:
Cara: Ali deve ser a Casa Rosada.
Esposa: Aahh.
Cara: É sim. Olha ali o Obelisco.
O avião então pousa. Mas o pouso não é suave, pois o avião toca duas vezes o solo. No intervalo entre um toque e outro, meu colega de fileira dispara aquela que eu considero a melhor pérola dele:
Cara: Fulana, pegamos num cocoruto!
Isso é o que o mala pensou que aconteceu com o avião
Eu ri muito, porém ainda foi pouco perto dos dois momentos seguintes. Primeiro foi quando eu desci da aeronave, encontrei meus familiares e me vi longe daquele casal dos infernos. Desabafei e ria à toa, pelo simples fato de estar livre. O segundo, e possivelmente inesquecível momento, foi ao ver o casal tentando se explicar pras autoridades argentinas na imigração. Eles não apenas não se entendiam como também não conseguiam justificar o fato de não terem fichas de imigração. Adorei deixá-los pra trás naquela madrugada.
Só que minha felicidade, mais uma vez, durou pouco. O ônibus da excursão só saiu do aeroporto depois que todos os passageiros fizeram sua imigração, incluindo o atrasado casal do avião. Só me restou esperar chegar no hotel, trancar bem a porta do quarto e, finalmente, dormir um pouco.
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