“Havia por ali um tipo de sorriso também diferente. Parecia imotivado, não era fruto de alguma conquista ou superação, era um fruir permanente da alegria de estar ali, vivo, existindo.” (Paulo Lima, editor da revista Trip, relatando sua primeira viagem à Indonésia)
Quanto mais se vai ao norte da Alemanha, mais rural vai ficando a paisagem. Ao cruzar a fronteira com a Dinamarca, os campos tomam conta de vez, apenas dividindo a paisagem com os cata-ventos de energia eólica e com o mar, uma que outra vez, quando se vai de uma ilha pra outra.
Apenas resolvi ir para Odense porque não tinha arranjado quem me hospedasse também no sábado em Copenhague. Assim, ia passar um dia nessa que é a terceira maior cidade da Dinamarca e no domingo ia pra capital. Três jovens ficaram de me hospedar. Segundo o perfil deles no CouchSurfing, eles moravam juntos desde pequenos – mas os detalhes que eu tinha sobre os três acabavam aí. Na véspera da minha viagem, eles me avisaram que eu teria de pegar um trem regional até a casa deles, pois eles moravam fora da cidade. Eu sabia que tinha alguma surpresa me esperando.
VIVA A SOCIEDADE ALTERNATIVA!
Não deu outra. Desci numa estação de trem no meio do nada. Estavam lá apenas a Lea (uma das três pessoas com quem fiz contato no CouchSurfing), uma amiga dela, um carro velho e uma ventania digna de Dinamarca. Em dois minutos já estávamos na “casa” onde “eles” moravam. Na verdade, a “casa” é um sítio e “eles” são integrantes de uma comunidade alternativa.
Segundo o fundador da comunidade (que eu fiz a bobagem de não anotar o nome), a comunidade começou com ele e sua esposa há mais ou menos vinte anos atrás. Eles eram do interior, porém como ela teve um câncer, eles tiveram que ir pra Odense tratar a doença dela. Assim, alugaram uma casinha fora da cidade para ter uma vida mais tranqüila e parecida com a que levavam até então. No hospital, eles conheceram outras pessoas que também estavam sofrendo e começaram a convidar essa gente a passar uns dias na zona rural com eles. Um dia, uma das pessoas perguntou se não poderia morar com eles lá, pois se sentiam bem naquele lugar e com eles como companhia. Assim começou a comunidade que hoje tem mais de 50 membros de toda a Europa.
A comunidade é parcialmente adepta ao budismo, mas pra entrar nela basta ter boa vontade. O que eles buscam mesmo é a paz interior e o autoconhecimento. Todos vivem de forma simples, dividindo quase tudo. Cada um ajuda na comunidade naquilo que faz de melhor (uns limpam, outros cozinham e etc.). Poucos trabalham na cidade ou meramente vão pra lá pra fazer voluntariado.
Hoje a comunidade tem até piscina e jardim de inverno
STRAWBERRY FIELDS FOREVER
Depois de ter ouvido essa história que resumi acima, não tive dúvida de que eu precisava passar todo o meu tempo na comunidade, conhecendo essa gente, sua cultura e aprendendo o máximo possível nas menos de 24 horas que iríamos dividir. E como valeu a pena!
Além de mim, haviam várias outras pessoas hospedadas na comunidade. Muita gente de países vizinhos vai passar as férias na comunidade para relaxar e meditar. Cada uma delas, ao hospedar-se, fica em um “quarto de visitas”, que na verdade é uma espécie de container individual no meio do mato. Dentro dele, apenas o mínimo necessário: uma cama, um armário, uma cadeira e uma luminária. Todos, visitantes ou não, têm apenas isso nos quartos. O resto é de todos.
O meu quarto-container ficava no fim desta simpática calçada feita com pedrinhas de rio
Muito boa aquela cama!
Tão logo larguei a minha mochila, me convidaram à colher os morangos, amoras e pitangas que iriam virar a geléia do dia seguinte. Bá, como essa atividade simples foi relaxante. Eu estava precisando disso mesmo. Depois fomos tomar café com outros integrantes da comunidade e ouvi a história de muitos deles – gente da Suécia, Alemanha, Itália e muito mais.
Morangos!
Às 17:30, fui convidado por outros membros da comunidade a meditar com eles. Eu nunca tinha feito isso, porém fiquei tri afim de aprender. Ia ser uma meditada light, de vinte minutos ao todo. Depois de ter recebido umas breves instruções de uma senhora austríaca que estava ao meu lado, fechei os meus olhos e comecei minhas tentativas. Dois minutos e nada de eu esvaziar minha mente. Abri meus olhos e todos estavam na mais absoluta concentração, sem mover um músculo sequer. Minha vontade inicial foi gritar "Ronaldo!" com todas minhas forças, mas me controlei e voltei às minhas tentativas. Mais alguns instantes e quando estava chegando perto de algo que pudesse ser chamado de meditação, o chefe dos meditadores disse “Tá beleza! Vamos ver o vídeo agora”.
O vídeo mostrava um guru jamaicano atendendo alguns fiéis na Índia. O cara era muito fodão. Ele nunca respondia as perguntas dos fiéis, mas fazia outras perguntas até que o próprio fiel descobrisse as suas próprias respostas. Quando eu crescer quero ser esperto como esse cara.
Acabado o vídeo, veio o segundo tempo de meditação. Não sei se meditei, mas que eu, de alguma forma, esvaziei minha mente por uns instantes e a sensação foi muito legal.
Sala de Meditação
Todos jantam juntos na comunidade e dividem três mesas gigantes. Eles conversam os mesmos assuntos que qualquer outra pessoa conversa, mas sempre tem algo diferente no ar. Eles (todos eles!) têm uma pureza e uma sinceridade naquilo que falam. Nada vem da boca pra fora. O sorriso está sempre estampado no rosto de cada um deles e eles sempre conseguem ver algo de positivo em toda situação que é abordada à mesa. Eu não sei se eu era digno de estar no meio de gente tão boa, mas me orgulho de ter vivido aquilo.
Depois daquele inesquecível jantar, que foi bem tradicional com salsichas, pão integral, batatas e muita salada, fomos assistir um filme – é a Sessão de Sábado deles. Ninguém é obrigado a ir a nenhuma atividade da comunidade, mas todos fazem questão de estar presentes. Dá gosto de estar na companhia deles. O filme era uma comédia bobinha americana, só pra relaxar mesmo.
HIPPIE, PUNK, RAJNEESH
Pra acabar bem a noite – muito embora estivesse recém anoitecendo, e já eram 23:00 – fui tomar um chá com o pessoal mais da minha faixa etária da comunidade. Eles são, ao todo, cinco. Os jovens estudam lá mesmo e para entrar na faculdade precisam fazer uma prova de validação de conhecimento. Dizem que o pessoal da comunidade tem uma das melhores médias dinamarquesas.
Além de mim e dos jovens da comunidade, tinha uma sueca e um alemão passando uns tempos lá, então o grupo era bem multicultural e as conversas pra lá de divertidas. Eles me indicaram muitas bandas legais. Selecionei as duas que mais curti abaixo: a Nephew e a Gob Squad, ambas da Dinamarca.
Quando o povo vai dormir, o silêncio impera de vez. A única coisa que quebra o silêncio é o vento frio (fazia uns 15 graus à noite, mais o vento) e o trem. Tirando isso, as quatro horas da mais completa escuridão que os dinamarqueses conseguem no verão são de pura paz. Sim, quatro horas. No inverno, são apenas quatro horas de dia.
No dia seguinte, acordei cedo pra vagar pela comunidade sozinho. Explorei cada canto daquele simples paraíso. Antes de partir, comi croissants com a geléia feita das frutas que havia colhido no dia anterior. Aquilo também teve um gosto especial. Depois dei uns 50 abraços de despedida em todo o povo da comunidade, que insistiu pra eu passar lá de novo um dia, e peguei meu trem pra Copenhague.
Bucolismo escandinavo
É BOM TU SABER
Um mochilão não precisa ter tudo planejado. Acabei me decidindo por Odense uns dias antes de viajar. A flexibilidade que esse modo de viagem te permite não é apenas algo encantador pela sua própria essência de liberdade como também pode te propiciar experiências jamais imaginadas. Quem diria que um dia eu iria me sentir tão integrado à uma sociedade alternativa semi-budista na zona rural da Dinamarca?! Hoje acredito que minha viagem não teria sido completa sem esse tipo de vivência. Acho que comecei a me tornar um mochileiro de verdade naquele dia, quando decidi trocar a chance de visitar uma cidade para conhecer um pouco mais sobre mim mesmo.
Nota do Ger: Resolvi fazer meu relato da Dinamarca em duas partes pra poder colocar mais detalhes nos posts. O próximo, se tudo der certo, sai fim-de-semana que vem.